quarta-feira, 9 de abril de 2008

Na tenda do suor

Uma luz febril pendia do teto e revelava os contornos do que se escondia sob aquela tenda. Pouco mais de dezesseis metros quadrados e uma meia dúzia de homens ao chão, estendidos sobre esteiras de náilon militar, lado a lado, e um outro, apenas, sobre a única maca disponível. Àquela hora os gemidos já haviam se recolhido em seus pesadelos, limitando-se a grunhidos e espasmos abandonados na penumbra. Da maca, pendia um braço.

Mais estranho do que a própria cena, era a reticência do silêncio que preenchia o ar impregnado de éter e cheiro de carne viva. Pela fissura na lona da tenda, convenientemente chamada de porta, entra um homem fardado, com aspecto resoluto, que levanta os olhos para a lâmpada medíocre que se ergue poucos centímetros acima de sua cabeça. Esfrega as mãos e as cheira, olha para o corpo inerte na maca e grita por cima dos ombros:

- Samuel, chegou mais um aqui!

O segundo homem entra na tenda andando com a mesma firmeza, sem muita pressa e sem nenhuma tranqüilidade. Era visivelmente mais jovem e não menos cansado. Pôs-se ao lado do primeiro, com as mãos na cintura, e contemplou por alguns segundos a cena, os moribundos e as paredes da tenda suadas de dor.

- O senhor sedou os outros antes de sair? – pergunta Samuel, com voz mais leve e cansada.

- Fiz isso, mas tem um gaúcho ali que tá fodido – e acenou com a cabeça na direção do desgraçado – Não sei se consegue agüentar até amanhã. Os outros talvez se recuperem, se essa porra acabar logo. Agora vamo ver esse aqui, que também não tá lá essas coisas não.

Desacordado, jazia de costas sobre a maca, boca entreaberta, o braço esquerdo pendendo.

- Foi o tempo de sair pra mijar e os padioleiros trouxeram mais esse aqui. Vai de lá e me ajuda – e fez um gesto indicando o outro lado da maca; e Samuel atendeu.

Os tiros ecoavam ao longe, em intervalos mais longos. Pareciam vir do lado sudoeste, para onde as colinas se derramavam pedregosamente em direção a um vale em cujo centro havia uma pedreira abandonada. A vegetação era bastante hostil, cerrada, espinhosa, com árvores baixas e retorcidas, geralmente ostentando caixas de marimbondo abandonadas. No chão, cascalho e terra dura. A esta hora da noite, umas quatro horas decorridas após o ocaso do Sol, o fogo cruzado parecia ter abrandado, e aquele seria o último ferido a adentrar a “tenda do suor”, como a chamavam os estadistas.

- Tem quanto tempo que o senhor não dorme? – rompeu-se o silêncio entre os dois.

- Umas trinta horas, eu acho. Me passa a tesoura aí, essa farda só tá enchendo o saco.

A tesoura fria foi passada enquanto uma das mãos de Samuel pressionava o ferimento na região da bacia, a meio palmo de distância do umbigo. Já não jorrava mais sangue, mas as vestes estavam encharcadas.

- Pois é, faz mais ou menos esse tempo aí que eu também to de pé...moído.

- Puta que pariu, estilhaçou o osso tudo aqui! Vai ser uma canseira quando esse camarada acordar.

- O senhor já encontrou onde tá a bala?

- Do jeito que ta aqui, parece que passou direto. Me ajuda a virar, vai.

O peso morto do corpo inerte dificultava o exame. A maca era estreita demais para simplesmente virar o corpo, fazendo-se necessário um giro sobre o mesmo lugar, sem que houvesse deslocamento do corpo de um lado para o outro.

Não havia orifício de saída. O projétil ainda estava alojado em algum lugar ali dentro daquele corpo. Resguardados no silêncio da concentração, um mordeu o lábio inferior e o outro suspirou, apoiando o peso em uma perna.

...que não estivesse no intestino.

Voltaram o corpo para a posição que o encontraram.

- Ainda tem luva de látex? – pergunta a Samuel sem tirar os olhos do ferimento.

- Mais uns quatro pares.

- Então me dá uma só.

A resistência do Estado, à qual integrava Samuel e seu superior, o Dr. Cel. Lúcio Freitas, já estava há doze dias sem receber provisões. Os panos esterilizantes já haviam praticamente esgotados, o éter e as anestesias acabaram havia três dias, um dos bisturis havia quebrado e um serrote de amputação havia sumido. Só lhes restavam a habilidade, a honra, algumas tesouras, gazes limpas, linha e agulhas de sutura, e algumas bandagens improvisadas, feitas de panos de pratos doados por civis favoráveis à resistência estatal. A falta de recursos provenientes da arrecadação do Estado apenas tornava mais difícil a resistência contra a milícia privada da Itravolt.

Enquanto o Dr. Cel. Lúcio chafurdava as entranhas do soldado baleado com seus dedos médio e indicador direitos – a mão esquerda apalpando por cima da pele – Samuel absorvia o sangue que minava com gazes brancas. De repente, um gemido.

- Caralho, ele tá acordando...seda ele Samuel, pega o éter lá. Não vai agüentar a dor se estiver acordado.

Samuel umedeceu uma das bandagens de pano de prato com um pouco de éter, segurou a cabeça do soldado com uma mão e com a outra pressionou o pano contra seu rosto.

- Acho que vai dormir por mais um tempo agora. Já encontrou alguma coisa?

- Ainda nada. Onde será que foi parar...? – respondeu o coronel enquanto remexia por dentro do soldado, a cabeça ainda abaixada.

Tão absortos que estavam, demoraram a se dar conta de uma voz forte gritando do lado de fora da tenda: “Resistência! Resistência pela República e pelo bem do povo!”.

Assustados, ergueram as cabeças e se entreolharam. Sem hesitar, Samuel sacou a pistola do coldre de ombro e saiu da tenda com cautela, olhando para um lado e para outro, piscando forte os olhos para se acostumar com a escuridão da madrugada que os envolvia. As pilhas haviam todas acabado e suas lanternas eram inúteis agora. A única fonte de energia elétrica era uma bateria de caminhão roubada de um pátio de manobras da Itravolt; já que não poderiam usar a bateria do único jipe de que dispunham naquele momento.
Ainda um pouco cego, Samuel se esgueirou na escuridão, pistola firme no pulso, apontando para frente. Agachou ao lado do pneu traseiro direito do jipe que ficava estacionado ao lado da tenda e fitou a vegetação quieta, procurando se acostumar com o breu da madrugada. De trás de um arbusto, um homem barbudo e de aspecto severo se levantou vagarosamente, caminhou com passos largos e lentos em direção a Samuel, com os braços erguidos em sinônimo de paz, e olhando fundo em seus olhos, se identificou:

- Comandante Carlos Rodriguez, fronte do sul.

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