quinta-feira, 10 de abril de 2008

Uma última canção para Paulo Silvério

O sol insistia em desafiar o clima fúnebre daquela manhã. Era um velório, mas não um velório comum. O corpo de Paulo Silvério jazia no caixão negro sem muitos detalhes, colocado no meio da sala sem grandes luxos ou flores ostentosas. Seu rosto era aparentemente sereno. Sua serenidade era quebrada apenas pela sobrancelha direita que teimava em ficar mais alta que a esquerda, dando um ar de dúvida e incerteza ao morto. Vestia sua melhor farda, com todas suas medalhas, incluindo a medalha da Nossa Senhora Aparecida, que mesmo sem muita fé, trazia no bolso interno do paletó para protegê-lo.

Silvério tinha sido um dos principais nomes da intelectualidade da resistência, um homem de ciência e filosofia que se viu obrigado a pegar em armas e liderar aqueles que compartilhavam de seu sonho. Era um herói enquanto vivo, e agora, deitado naquele caixão, era um mártir. O clima era tenso. O velório de um homem da envergadura de Paulo Silvério atrairia todos os outros lideres da Resistência. Itravolt sabia disso, por isso toda a cerimônia foi preparada em absoluto sigilo e a segurança reforçada.

Por volta das dez horas da manhã, um a um, todos os Comandantes chegaram para o último adeus ao grande mestre. Vestindo trajes civis pretos, se abraçavam silenciosamente na entrada da sala. Olhavam o velho companheiro Paulo, de longas barbas alvas e de olhos tão tranqüilos que nada temiam, dizendo adeus e, principalmente, obrigado. A mulher de Paulo estava sentada ao lado do caixão, silenciosa, estática, visivelmente fora de si. Todos os Comandantes a saudaram e ofereceram seus sentimentos à viúva. Ela respondia mecanicamente balançando a cabeça positivamente, enquanto enxugava discretamente as lagrimas no canto do olho.

Quando o último comandante chegou e prestou sua homenagem ao velho líder, o silêncio da sala foi quebrado pela voz rouca e potente do Comandante Gustavo de Mello:

- Caros companheiros, devo dizer que hoje minha alma chora. Chora como uma criança, perdida e assustada. Chora como uma mãe que recebe a noticia que o filho morrera em combate, ou melhor, choro como um filho que recebe a noticia que seu pai sucumbiu em combate. Não sei se conseguirei exprimir meu sentimento de gratidão e respeito por esse homem, com quem tanto aprendi, e a importância dessa figura tranqüila, mas de uma presença monumental, para nossa Resistência. Hoje, caros amigos, enterraremos o último homem que entrou e viu com esses olhos, agora cerrados eternamente, a Cidade de Concreto.

Os outros Comandantes ouviam atentamente enquanto compartilhavam da dor coletiva que circundava o ambiente. O sol insistia em desafiar o clima fúnebre daquela manhã. Como um último pedido, escrito e registrado no testamento de Paulo Silvério, sua mulher se levantou caminhou até o lado oposto da sala, retirou o lençol que cobria um antiguíssimo móvel, de muita estima para o velho Comandante, e colocou um disco negro para rodar, enquanto uma agulha o arranhava. Estranhamente, dali saía som, e então a música contaminou a sala e apaziguou os ânimos. Era um pouco triste, e arrancou a lágrima reprimida do mais forte dos presentes. Todos fizeram reverência à última canção para Paulo Silvério. Alguns Comandantes murmuravam baixinho, como se rezassem, os versos de Strawberry Fields Forever. Ninguém mais disse nada. Silenciosamente todos se retiraram. Aquele era um dia triste.

4 comentários:

mrbgs disse...

Adoro esse tipo de texto. Uma descrição linear dos fatos que acaba prendendo até a última linha. Muito bom!

Nayna disse...

O final desse ultimo texto vale por "todos" os outros!!!
Tdba

Nathalya Carvalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nathalya Carvalho disse...

Che, você realmente é um verdadeiro artista. Em gestos e palavras. A trasmissão real do que se pode sentir e mais: dizer!

Bjos